Diálogos do lobista Andreson de Oliveira Gonçalves, investigado pela Polícia Federal sob suspeita de compra de decisões judiciais, mostram uma tentativa de aparentar proximidade com o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Kassio Nunes Marques, e uma efetiva atuação do lobista em processos sob sua relatoria no Supremo.
Procurado, o STF informou que o ministro disse não conhecer o lobista e que já pediu providências ao relator do caso, o ministro Cristiano Zanin, sobre o uso de seu nome no que classifica como estelionato.
“O ministro Nunes Marques jamais conheceu, viu ou ouviu falar de nenhum dos envolvidos. Jamais falou ou trocou mensagem com nenhum deles. Nunca houve e Nunca houve encontro nem no Brasil e nem fora do país. O ministro acredita ter ocorrido uma tentativa falsa de demonstração de prestígio para induzir outrem a crer na proximidade, um caso clássico de estelionato”, afirmou, em nota ao UOL.
“O ministro Nunes Marques expressa indignação com o envolvimento de seu nome nas conversas dos integrantes do esquema e informa que encaminhou pedido de providências ao relator do caso no STF.”
O UOL analisou mais de 9.000 mensagens trocadas entre Andreson de Oliveira Gonçalves e o advogado Roberto Zampieri, assassinado no final de 2023, em Cuiabá.
Os diálogos foram extraídos do celular de Zampieri e fazem parte de investigações sigilosas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e na Polícia Federal.
Nesses diálogos, há diversas citações ao ministro Nunes Marques, principalmente envolvendo processos que tramitaram sob a relatoria dele no STF.
O material está sob análise do procurador-geral da República, Paulo Gonet. O ministro não é investigado.
Os Processos
A esposa de Andreson, Mirian Ribeiro Gonçalves, foi constituída como advogada em sete processos no STF, depois que Nunes Marques assumiu a relatoria.
Em todos eles, o ministro deu votos favoráveis aos clientes dela.
Eram ações movidas por desembargadores de Mato Grosso, com o objetivo de anular uma penalidade de aposentadoria compulsória aplicada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), por acusação de desvios de recursos do tribunal para uma loja da maçonaria, entre 2003 e 2005.
Esses processos representam sete das onze ações da advogada Mirian Ribeiro no STF nos últimos dez anos, mas as demais são recursos, ou seja, causas originadas em outros tribunais.
As mensagens demonstram que Andreson, seu marido, atuou nos bastidores desses processos, enquanto constituiu Mirian formalmente nas ações.
O lobista se apresentava a conhecidos como advogado, mas não tem registro na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
Andreson é investigado por suspeita de compra de decisões no Tribunal de Justiça de Mato Grosso, além de outros indícios de crimes envolvendo o TJ de Mato Grosso do Sul e funcionários do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Apesar das vitórias obtidas por Mirian no STF, há uma diferença entre a atuação de Andreson nesses casos e os outros sob investigação da PF envolvendo o STJ, nos quais há suspeita de venda de decisões com a participação de servidores do Judiciário.
Naquele tribunal, o lobista demonstrou ter acesso a documentos com as minutas antecipadas de votos dos ministros, indicando a obtenção de informações privilegiadas de dentro dos gabinetes e uma capacidade de influenciar as tomadas de decisões.
No STF, as mensagens às quais o UOL teve acesso não demonstram nada parecido.
Os documentos enviados por Andreson a Zampieri nos processos de relatoria do ministro Nunes Marques eram todos de caráter público, disponíveis no site do STF, e foram enviados somente após terem sido publicados oficialmente.
Desses sete processos, cinco já tramitavam no STF, desde 2010, sob a relatoria do então ministro Celso de Mello.
O antigo decano da Corte rejeitou os pedidos liminares feitos pelos desembargadores para retornarem aos seus cargos.
Posteriormente, Celso de Mello submeteu o assunto para julgamento do plenário virtual do STF, votando para manter as punições.
O julgamento foi interrompido por um pedido de vista. Celso de Mello se aposentou no fim de 2020 e foi substituído pelo ministro Kassio Nunes Marques, primeiro indicado de Jair Bolsonaro a uma cadeira no STF.
Nunes Marques, então, tornou-se o relator dessas ações movidas pelos desembargadores de Mato Grosso, mudando o cenário do julgamento.
Meses depois de ele assumir a relatoria, Mirian passou a ser constituída como advogada nesses casos antigos, substituindo medalhões da advocacia como Sérgio Bermudes.
Após Mirian assumir os processos, os desembargadores tiveram suas penalidades revertidas. Nunes Marques levou os casos para a Segunda Turma do STF, em novembro de 2022.
No julgamento, ele mudou o posicionamento adotado pelo antigo relator e votou para anular a punição aos desembargadores.
Anteriormente, Celso de Mello entendeu que o julgamento do CNJ que puniu os desembargadores havia cumprido todos os requisitos legais, respeitando o direito de ampla defesa, e deveria ser mantido.
Já Nunes Marques, ao modificar o entendimento, opinou que a punição do CNJ havia sido “desproporcional” e disse que os desembargadores foram absolvidos nas investigações criminais sobre o caso.
Por maioria de votos na Segunda Turma, cinco desembargadores de Mato Grosso defendidos por Mirian ficaram livres da punição — em uma sessão presencial em novembro de 2022 e em um julgamento virtual de um último caso no ano seguinte.
Nunes Marques determinou que eles fossem reintegrados ao quadro do TJ de Mato Grosso, com pagamentos dos salários retroativos pelo tempo em que ficaram afastados.
Os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e André Mendonça acompanharam o voto de Nunes Marques. Só Edson Fachin votou contra a anulação das punições.
Com essas vitórias em cinco processos na Segunda Turma, Mirian ainda ingressou com duas novas ações no STF para outros desembargadores de Mato Grosso. O argumento era semelhante e Nunes Marques também deu posição favorável.
Esses dois processos, entretanto, foram levados para julgamento no plenário do STF. Sob a composição dos onze ministros da Corte, o resultado foi que Mirian saiu derrotada nesse novo julgamento.
Sobre o caso, o Supremo informou também que “todos os pedidos de cumprimento de sentença apresentados pelas partes no caso foram rejeitados e enviados à Justiça do Mato Grosso porque a execução não caberia ao STF”. “Todas as decisões estão nos andamentos processuais públicos”.
Citações nos diálagos
As conversas entre Andreson e Zampieri mostram que o lobista estava atuando nesses processos julgados por Nunes Marques e indicam uma prestação de contas ao advogado a respeito do andamento dos casos.
Mas a primeira citação ao nome dele foi no dia 21 de outubro de 2020, quando o Senado aprovou sua indicação ao cargo de ministro do STF, feita pelo então presidente Jair Bolsonaro.
No mesmo dia, Andreson enviou a Zampieri uma notícia sobre a aprovação, sem tecer maiores comentários.
Em abril de 2022, Andreson diz a Zampieri ter visto Nunes Marques em uma viagem internacional, sem deixar claras as circunstâncias. Segundo o ministro disse a interlocutores, porém, ele estava em casa, em Brasília.
As referências ao ministro se intensificam ao final daquele ano, quando começam a ser julgados no STF os processos de interesse do lobista.
Em 10 de novembro de 2022, às 18h10, o lobista envia a Zampieri o link de uma notícia sobre o resultado do julgamento na Segunda Turma, que anulou a punição do CNJ aos desembargadores.
Cinco minutos depois, Andreson telefona para Zampieri e envia o comprovante de protocolo de uma nova manifestação de Mirian direcionada a Nunes Marques, no STF, para obter o mesmo benefício para um outro desembargador.
No dia 17 de fevereiro de 2023, às 11h53, Andreson envia a Zampieri o link de uma nova notícia sobre o caso, dessa vez a respeito da publicação do acórdão do julgamento.
Em seguida, o lobista compartilha com o advogado dois documentos do processo com votos de Nunes Marques, que estavam públicos. Zampieri responde: “Bom dia. CHIC”. Andreson, em seguida, diz ao advogado: “Tá na mão”.
No dia 15 de agosto de 2023, às 11h, Andreson envia a Zampieri a foto do andamento de outro processo no STF de relatoria de Nunes Marques, que tinha sido levado a julgamento no plenário virtual.
O lobista também compartilhou um documento contendo o voto proferido pelo relator, que era público.
Na mensagem seguinte, enviada 27 minutos depois, Andreson envia ao advogado os dados bancários com o Pix de sua empresa, para receber um pagamento.
A conversa não explica a que se refere esse pagamento, mas as mensagens seguintes continuam abordando o julgamento do caso no STF.
Às 12h12, Andreson envia link de uma nova notícia sobre o voto proferido por Nunes Marques e pede em seguida a Zampieri para encaminhar a publicação a um desembargador de Mato Grosso, que tinha relação próxima com o advogado.
Em 27 de outubro de 2023, às 11h24, Andreson compartilha notícia sobre o posicionamento favorável do STF em um dos processos dos desembargadores. Zampieri responde: “Bom dia. Tudo bem? Parabéns!!!!”.
Andreson volta a abordar o assunto em mensagens do dia 23 de novembro de 2023. Ele encaminha uma mensagem de texto a Zampieri, às 16h02, dizendo: “Hoje saiu intimação para contrarrazões”.
No mesmo dia, às 16h28, o lobista envia ao advogado um suposto print de uma conversa de WhatsApp, cujo nome do interlocutor seria “Ministro Kassio Nunes”.
Questionado, o ministro afirmou que a conversa foi forjada e que nunca teve um perfil de WhatsApp com a referida foto.
No suposto diálogo, ele perguntaria a Andreson se teria alguma orientação para o julgamento do caso envolvendo mais um desembargador de Mato Grosso, com uma foto da tela do processo no computador.
O lobista não faz nenhum comentário sobre o print, nem Zampieri dá qualquer resposta.
O STF informou ao UOL que o print foi feito com base em “um perfil falso atribuído ao ministro”. “Em relação a julgamentos de magistrados do TJ do Mato Grosso, todas as decisões foram tomadas colegiadamente”, diz a nota da Corte.
A última citação a esses processos é no dia 1º de dezembro de 2023. Andreson remete mensagens encaminhadas a Zampieri contendo foto com o andamento dos dois processos e os votos proferidos por Nunes Marques, favoráveis aos desembargadores de Mato Grosso defendidos por Mirian.
Horas depois, Zampieri apenas pergunta se o lobista poderia falar ao telefone. Não há nenhum comentário adicional sobre o assunto no diálogo entre eles.
Andreson tem relação com o Judiciário de Mato Grosso desde pelo menos 2009, quando foi investigado na Operação Asafe, sobre venda de decisões no TJ-MT. Em um grampo telefônico, a PF identificou diversas ligações entre ele e um advogado investigado.
As conversas usavam termos cifrados para se referir a processos judiciais. Ao fim da investigação, a PF considerou que as provas contra Andreson eram insuficientes para um indiciamento.
“Durante a investigação, Anderson (sic) realiza contatos e encontros frequentes (alguns deles acompanhados por equipe policial) para tratar de assuntos relacionados a negociatas processuais. Provavelmente em função da sua prisão em operação policial, Anderson (sic) é extremamente cauteloso em seus diálogos telefônicos”, diz um relatório da Polícia Federal produzido naquela época.
A defesa de Andreson afirmou que ele nunca encontrou nem nunca esteve com o ministro Nunes Marques, mas disse que não comentaria o teor dos diálogos por não ter obtido acesso à investigação.
Sobre transações financeiras com o advogado Roberto Zampieri, a defesa disse que eles mantinham negócios entre si, sem nenhum caráter ilícito.
A defesa também afirmou que a advogada Mirian Ribeiro Gonçalves tem uma carreira de 27 anos na advocacia e fez a sustentação do processo dos desembargadores no Supremo Tribunal Federal.
Citou ainda que o fato de ela ser uma advogada de Mato Grosso não significa que ela não possa obter êxito em causas no Supremo Tribunal Federal.
A íntegra da manifestação do STF ao UOL:
O Ministro Nunes Marques jamais conheceu, viu ou ouviu falar de nenhum dos envolvidos.
Jamais falou ou trocou mensagem com nenhum deles.
Nunca houve encontro nem no Brasil e nem fora do país.
O ministro acredita ter ocorrido uma tentativa falsa de demonstração de prestígio para induzir outrem a crer na proximidade, um caso clássico de estelionato.
Trata-se de perfil falso atribuído ao Ministro.
Em relação a julgamentos de magistrados do TJ do Mato Grosso, todas as decisões foram tomadas colegiadamente.
O Ministro Nunes Marques expressa indignação com o envolvimento de seu nome nas conversas dos integrantes do esquema e informa que encaminhou pedido de providências ao relator do caso no STF.